Mamãe sempre diz que nunca viu alguém gostar mais de comemorar seu aniversário do que o Tio Haroldo. Conta que na hora dos parabéns - quando a maioria dos adultos se constrange com o apagar das velhinhas - ele saltita, bate palmas, e ri como criança.
Lembrei-me disso ontem, chegando ao hospital Walter Cantídio, em Fortaleza, para vê-lo. Catorze dias depois da cirurgia que lhe deu um novo fígado, assim que me vê, ele pede, como a mesma alegria de uma criança que exibe seus brinquedos novos, que me mostrem a cicatriz enorme no abdômen, e os pés e mãos desinchados. Os pontos estão sequinhos, e os pés e as mãos voltaram ao normal.
Ele fala que quer cortar o cabelo, lembra que o filho não quer que fique grisalho, pergunta da minha sogra, diz que já foi camelô, e parece querer descontar os dias em que emudeceu pela encefalopatia, a inflamação que causa alterações cerebrais pela disfunção do fígado.
Também quer fotos com os médicos e as enfermeiras, e com Tia Jesus de um lado e Tia Joana do outro. Quando me afasto, diz: — O sorriso, o sorriso! Fotografa o sorriso! - para que lhe tirem a máscara do rosto.
O tempo parou por horas, naquele segundo. Tive a impressão de não ter feito a foto. Tive a vontade de ficar ali parada. Tive a certeza de que aquele era o “estado de graça” do catecismo da minha infância: o sorriso do tio Haroldo.
Agradeci. Por ele, por tê-lo, por poder continuar a tê-lo. Pedi que bênçãos sejam derramadas na família do doador. Que outras pessoas e famílias sejam inspiradas pelo amor que é partilha e autorizem a doação de órgãos.
A fotografia? Está aqui embaixo. Está impressa. Vai se multiplicar entre os irmãos, sobrinhos e amigos. Mas o que rogo a Deus que se multiplique seja o sorriso. Que vendo o genuíno sorriso de quem nasceu de novo, sejamos capazes de semear a vida no lugar da dor. Que seja possível que a dor mais profunda de quem enterra os seus, represente renascimento e alegria para quem padece na imensa fila de transplantes no Brasil.